7/05/17

O direito de, bem, nascer


Conto baseado em um fato real



― É menino! ― 
A constatação, dita pela médica, Ana Amélia, inundou de felicidade a sala de radiologia de um  Hospital do SUS carioca, onde Néia dos Santos, de 29 anos, se submetia a um exame de rotina no seu pré-natal: a ultrassonografia obstétrica.

―  Nosso bebê é hooooomem! É homem! ― Gritou o pai, Da Silva, depois abriu um largo sorriso.

― Obrigado Senhor por atender ao meu pedido ― Agradeceu o pai coruja.

Enquanto o casal extravasa sua  felicidade, a doutora, explica para eles que esse exame, é o primeiro contato com da medicina com universo intrauterino e revela, além do sexo, informações reais sobre o bebê, que antes, só seriam possíveis, após o nascimento.

―  Mas tá tudo bem com ele, não é doutora? ― Pergunta Néia.

― É claro que está tudo bem com o seu bebe. O exame mostrou que a sua idade gestacional é de 32 semanas, o sexo vocês já sabem, masculino. O Seu bebê está bem encaixado no útero. Não tem nem um irmãozinho gêmeo com ele. E o melhor: não foi diagnosticado malformações fetais. Ou seja, ele está mais saudável do que nunca ― Responde a especialista sorrindo.

Um segundo momento de felicidade toma conta do casal. Néia, agora, tinha certeza que estava grávida e iria ter um filho.

― Agora estou me sentindo mãe de verdade ― Revela Néia.

― É natural que você sinta-se assim. Estudos psicológicos indicam que é após a primeira ultrassonografia que a mãe sente-se realmente grávida. É nesse momento que a mamãe vê seu bebe pela primeira vez, sua forma, seu comportamento, além de escutar seu coraçãozinho batendo. Tudo isso faz você ter certeza que ele é real ― Explica a médica ao casal.

O casal não cabia em si de felicidade. Estava tudo perfeito. Na agenda deles, o enxoval era prioridade até o dia que o primeiro filho de Néia e Da Silva viesse ao mundo. 

Mas, antes disso, naquela mesmo dia, à noite, em casa, eles decidiram que a criança iria se chamar Artur, em homenagem a Artur Antunes Coimbra, o Zico. O Flamengo é o time do coração de Da Silva e o Galinho de Quintino, seu maior ídolo. O paizão já se imaginava com Arturzinho indo na Toca do Urubu, assistir a uma jogo do seu Mengão.

― Quem sabe, se o meu Arturzinho, um dia não veste esse manto sagrado que foi de Zico. Gooolaaaaaçooooooo de Arturzinho, o camisa 10 da Gávea ― Sonha alto com o futuro do filho, Da Silva.

As semanas passam. Se aproxima o dia de Arturzinho vir ao mundo. O jovem casal faz os preparativos finais para receber seu filho. Da Silva e Néia são pessoas simples. Ela, dona de casa. Ele, vigilante. Moram na Favela do Lixão, no centro de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. 

Eles, como a maioria dos moradores da comunidade, convivem diariamente com cenas de criminalidade. Assaltos, execuções, tiroteios em confrontos entre policiais e bandidos fazem parte do cotidiano do casal.
Aprendem no dia a dia a conviver com esse clima de insegurança e incerteza, por não saber se, seus filhos, quando vão à escola, voltam vivos.

Os comerciantes, por exemplo, sofrem com as leis impostas pelo tráfico e pelas milícias. Pagam para ter proteção. 

Já as crianças, principalmente aquelas que não estudam, são aliciadas, fazem seu “alistamento militar na Favela” e viram soldados do tráfico.

Na verdade. todos são alvos. Seja do morro ou do asfalto. Quando acontece um tiroteio, uma bala perdida sempre encontra alguém.

Da Silva sabe bem disso, já presenciou vários desses confrontos, seja entre facções do crime, um querendo tomar a “boca” do outro, ou quando o Batalhão de Operações Policiais Especiais–BOPE, invade o Lixão, comandados pelo “Caveirão”, à cata de traficantes.

― O “Caveirão” já entra atirando. É bala pra todo lado. Tiroteio aqui no Lixão virou rotina, tem todo dia. É como acordar, tomar banho e escovar os dentes ― Conta Da Silva.

Um desses tiroteios, seria mais um entre tantos, se não atingisse em cheio a família de Da Silva e Néia. 

Era uma sexta-feira. Fim de tarde. Fim de expediente. Hora de voltar pra casa depois de um dia estressante de trabalho. Metrô lotado. Ônibus lotado. Lotações lotadas. Tudo lotado. Mas, pra quem vai pra casa, enfrentar a tudo e a todos para se reunir com os seus é café pequeno. Assim fez Da Silva naquele e em todos os outros dias de labuta.

Néia estava com 39 semanas  de gravidez. Na semana seguinte seu filho viria ao mundo. Arturzinho, chutava como nunca. O que à levava crer que seu marido estava certo: Ele seria um jogador de futebol e a barriga da sua mãe, sua bola.

Enquanto espera Da Silva chegar do trabalho, a dona de casa vai ao supermercado próximo da sua casa, depois passa na farmácia e quando está de volta pro seu lar, vê a movimentação de policiais. Ela pressente que algo está para acontecer. Instintivamente, coloca a mão na barriga, pra proteger seu bebê. Ouve tiros. Começa o corre-corre. Assustada, tenta abrigar-se em um depósito de bebidas. Tarde demais. Sente um forte impacto no quadril. 

Percebe que está sangrando. Pede ajuda aos policiais. Quase sem poder andar, devido as fortes dores abdominais, Néia, amparada pelos PM-s, é colocada na viatura. Desmaia. Acorda no Hospital. Lá, ela sabe, pelos médicos, que recebeu um tiro no quadril e que o obstetra teve que fazer um parto cesariana de emergência.

Mas, o que Néia não sabia, é que aquele bala acertou também seu filho. No boletim médico a constatação. O projetil atravessou o tórax do recém-nascido, atingiu parte da orelha, perfurou os pulmões dele e causou uma lesão na coluna que o deixou paraplégico.

Longe dali, sem nada saber, Da Silva estava “preso” na Linha Vermelha, interditada pela polícia, na altura de Duque de Caxias, para conter a população enfurecida com o ocorrido. 

No hospital, Néia aguarda ansiosa para ter seu filho nos braços. Mas, ele não estava mais lá. Por determinação médica, foi transferido para uma UTI neonatal, em estado gravíssimo.

A violência revela o poder de uma bala e os estragos que seus estilhaços fazem no presente e e no futuro das pessoas: consegue separar três vidas, tão perto e, agora, tão distantes um do outro. 

Diante do quadro, o sonho de Da Silva parece impossível (ver seu filho jogar no Flamengo, com a Camisa 10, que foi de Zico e ficar famoso). 

Da fama, só restou, a ultrassonografia de Artur, que virou capa do Jornal impresso Extra e o seu Raio-X que viralizou na internet. 

Uma semana depois do incidente, Artur, que pesa pouco mais de três quilos e mede 50 centímetros, demostra uma força inacreditável e resiste bravamente, apesar do seu estado crítico. 

Néia, já de alta, e o marido visitaram o filho pela primeira vez e receberam uma boa notícia do pediatra.

― A medula óssea no Artur não se rompeu. Isso indica que ele pode recuperar o movimento das pernas ― disse o medico.

O quadro de Artur, apesar de instável, dá sinais de melhora. Através de sondas, ele é alimentado com o leite materno da mãe. Um sopro de esperança invade a vida desse casal. Eles acreditam que seu filho, que não chorou ao nascer, por não ter forças nos pulmões, é forte, sorrirá para a vida e voltará a andar; E têm fé que quando Artur, crescer e vencer vai restaurar por si, com ajuda dos pais e familiares, o que lhe foi tirado de forma tão brutal: o direito de, bem, nascer.

Uerbet Santos 
Jornalista, publicitário e roteirista.
Foto: ultrassom do feto Artur ( Marcio Alves - Agencia O Globo)


*Nota do Autor: Esse conto é uma obra de ficção, os nomes dos personagens também o são. Mas, é baseada em um fato real ocorrido no dia 30 de Junho de 2017 quando a Claudineia dos Santos Melo, gravida de 9 meses, foi atingida por uma bala perdida que também acertou no seu filho Arthur, publicada na edição impressa e digital do Jornal Extra do Rio de Janeiro

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